Por Ricardo Komatsu
Um dos possíveis enfoques é o do envelhecimento como um
fenômeno biológico-funcional. Podemos tratar como senescência o
envelhecimento natural, ou fisiológico, e, como senilidade, o
envelhecimento com doença(s), ou patológico, mas, por vezes são
tênues as divisas entre a fisiologia e a patologia do envelhecimento.
Qual o limite entre o esquecimento benigno e a demência
incipiente, ou a reação de luto após um acidente vascular cerebral –
AVC que paralisa metade do corpo, e a depressão pós-AVC ?
Impossível negar que o envelhecimento seja um fenômeno
biológico. Não observamos apenas os sinais externos do
envelhecimento através da ectoscopia do idoso: à inspeção já é possível
ver as alterações cutâneas como as rugas, e as melanoses, a pele fina,
por vezes com púrpuras senis, ou as alterações nos cabelos que
embranquecem (canície), ou dos pelos ressequidos. Basta verificar a
capacidade funcional do ser humano no decorrer da vida, e observar
uma drástica redução da reserva orgânica com o passar dos anos, após
a idade adulta.
Cada molécula, tipo de célula, órgão, sistema orgânico, ou ser
vivo tem as suas peculiaridades.
Dos telômeros e telomerases dos mecanismos de envelhe-
cimento, aos genes presenilina 1 e 2 na manifestação da Doença de
Alzheimer; das células epiteliais, substituídas inúmeras vezes ao longo
da vida, aos neurônios, que únicos, não se duplicam; dos rins e seus
fluidos, aos pulmões e seus gases; do sistema cardiovascular e sua
hidráulica, ao sistema endocrinológico, da regulação das funções; das
diferentes espécies: da drosófila à tartaruga gigante das Ilhas
Galápagos; da longevidade segundo o gênero: das mulheres aos
homens; de um homem ao outro...
Biologicamente, existem idosos e idosos...
Acreditava-se que tudo declinava com a idade: da capacidade
vital à taxa de filtração glomerular, do débito cardíaco às funções
cognitivas. Muitas destas observações advinham de estudos
transversais que capturavam uma foto de determinados idosos, e que
atribuíam uma menor função nos diversos parâmetros avaliados, aos
indivíduos mais idosos. Invariavelmente, traçavam uma curva
descendente.
Com a realização dos grandes estudos longitudinais, tipo coorte,
quando populações de pessoas adultas foram acompanhadas durante
um maior período de tempo, observando-se o envelhecimento dos
indivíduos destas populações, como em filmes de longa metragem,
foram identificadas sub-populações de idosos com maior ou menor
declínio destas funções orgânicas (LINDEMAN, 1990). Algumas
alterações fisiológicas do envelhecimento podem ser revertidas ou
atenuadas através da prática regular de atividades físicas, por
exemplo.
Funcionalmente, também, existem idosos e idosos...
Tal fato propiciou o desenvolvimento das propostas de
envelhecimento saudável, bem sucedido, com qualidade de vida, e do
conceito que não restringe a saúde do idoso à mera ausência de doença
orgânica, mas estende o conceito à preservação de funções que
assegurem a realização de atividades da vida diária.
Doenças e limitações podem co-existir. O que importa é como
isto impacta a vida de cada pessoa idosa, ou seja, o quanto esta situação
afeta as atividades da vida diária do idoso, das mais elementares, tais
como movimentação, alimentação, controle de esfíncteres e
higienização, vestuário, banho, até as mais complexas com cuidar das
finanças, pagar as contas, administrar bens, cuidar da sua própria
medicação, e fazer as compras .
A dimensão biológico-funcional deve ser considerada no
envelhecimento de cada indivíduo. Não basta constatar um declínio
de função, é necessário caracterizar as limitações frente às
possibilidades de adaptação, reabilitação, e suporte, que possam ser
oferecidas a cada pessoa, com vistas à preservação da sua autonomia,
da sua independência e do envelhecimento bem sucedido.
Segundo Jacob-Filho (1998), necessitamos promover a saúde do
idoso com medidas efetivas para: aumentar a reserva funcional,
desenvolver mecanismos de adaptação para sobrecargas funcionais
dos mecanismos de controle da homeostase, evitar ou postergar a
manifestação clínica de doenças, controlar as doenças existentes,
compensar as limitações, prevenir traumas e acidentes, manter
hábitos saudáveis de vida, e exercer a cidadania com plena inserção
social.
Envelhecimento e a velhice podem ser enfocados também como
uma fase da vida: de contornos, formas e trajetórias incertas.
Não há nitidez no olhar sobre quando se inicia a velhice. Não
somos tão velhos somente quanto o nosso coração, ou as nossas
artérias. Somos tão velhos quanto a nossa experiência e tempo de vida,
ou quanto o minguar da nossa esperança na vida, e da nossa
expectativa de bem-viver.
Velhice: ciência ou senso comum? Há algum marcador que
instantaneamente confirme a nossa condição de velhos? Certamente
não.
Esta transição entre a maturidade e a velhice não possui um
marco referencial único. É um período, uma etapa, uma fase da vida.
Fase de projetos amadurecidos de vida. De colher os frutos do
que se semeou. De famílias constituídas, estruturadas, ou não. De
união, ou desunião. Muita alegria, ou lamentos.
Fase de sofrer perdas. E de saber superá-las.
Não há quem chegue à velhice sem nada perder. Acuidade
auditiva, visual, mobilidade, memória. Cônjuge, entes queridos,
amigos. Aposentadoria: perda da ocupação, status, poder, e redução
dos rendimentos. Espaço, sua casa, seu lar. São várias as formas de
perdas nesta fase da vida.
Fase para reconhecer limites e possibilidades de bem-viver.
Superando os limites, abrandando as limitações, e maximizando todas
as possibilidades.
Fase em que o corpo queixa-se da vida. E de como não viveu...
O corpo que foi usado e às vezes, fustigado pelo trabalho excessivo e
desmedido. Corpo que hoje se queixa de dor. Uma dor funda que
deveras sente...
Fase em que a mente queixa-se da vida. Poderosa, continua a
formular hipóteses para tudo: sucessos e fracassos, derrotas e vitórias,
amor e ódio, aversão e empatia, mas nem tudo consegue explicar.
Angústia, estresse, ansiedade, depressão...
Envelhecer, uma fase de desafios.
O maior talvez seja o de superar os limites impostos. De buscar
as formas e criar os meios. Obter ajuda. Cuidar-se.
Investir no equilíbrio e desenvolver novos habitus.
Envelhecimento, fase de desafios e habitus.
Enquanto a palavra hábito indica disposição duradoura
adquirida pela repetição freqüente de um ato, maneira de ser, a
palavra habitus envolve o conceito com o qual se designa o conjunto
de padrões adquiridos de pensamento, comportamento, gosto, etc.,
considerados como elo entre as estruturas sociais abstratas e a prática
ou ação social concreta (FERREIRA, 1999).
Habitus na concepção de Pierre Bourdieu (2002), refere-se a um
conhecimento adquirido, uma disposição incorporada pela pessoa,
social e historicamente construída durante sua vida, e cujo exercício
será determinado pela posição social do indivíduo, permitindo-lhe
ver, pensar e agir com capacidade inventiva, criadora, e
improvisadora nas mais diversas situações de vida.
As pessoas que envelhecem muitas vezes são obrigadas a
deixarem seu habitat de muitos anos, trocando o universo da zona
rural, ou de uma pequena cidade do interior, um bairro ou uma vila,
para uma área metropolitana.
Ou então, do centro da cidade, para a periferia. Ou mesmo
repartir o seu lar recebendo para morar familiares da mesma ou de
outras gerações, como irmãos, filhos separados, ou netos com
problemas de relacionamento com os pais, ou que vieram para
estudar.
Acompanhar os filhos ou netos após a viuvez e/ou idade
avançada, reunir rendimentos, agrupar-se num ambiente
intergeracional, dividir o espaço, co-habitar.
Buscar o re-equilíbrio da vida e sobreviver a situações de
coabitação, limitações, perdas, como as descritas, envolve romper com
hábitos de vida, criar habitus que ajustem as estruturas objetivas,
externas, e as estruturas interiores, subjetivas e incorporadas pelas
pessoas.
Envelhecer também demanda toda esta capacidade adaptativa
com o companheiro, ou na sua ausência, com a família ou na sua falta,
com a sociedade, suportiva ou não, e principalmente consigo mesmo.
Já o envelhecimento, tal como ele é visto na perspectiva dos que
já são idosos, ou do outro, que envelhece, mas ainda não é "velho", é
um processo social.
Há maior doença do que o preconceito com os idosos, a
discriminação, a representação social da decadência e decrepitude, do
peso para a família, e da carga para a sociedade?
O envelhecimento populacional traz à tona a discussão da
falência dos sistemas previdenciário e de saúde com o crescimento do
percentual de idosos em uma velocidade alarmante em muitos países
em desenvolvimento.
Estar no mundo sem produzir, sem mais trabalhar. Seriam os
aposentados e os idosos inúteis à sociedade? Ou há – ainda - espaço e
tempo para realizações na vida? Grupos de amigos, reuniões
familiares, encontro de ex-..., trabalho voluntário, teatro, clubes de
serviço, festas, missas ou cultos, viagens, cinema, universidade da
terceira idade, música, netos, dança de salão, ginástica, caminhada...
tempus fugit; carpe diem...
"A primeira questão que ressalta é a idéia, no imaginário
retratado pela imprensa, de ‘idoso’ como pobre e como problema
social" (SOUZA, 2002, p.191). A desvalorização do idoso é claramente
manifesta em nossa sociedade, e não somente pela imprensa. Neste
caso, a imprensa registra o que de fato ocorre.
No Brasil, raramente se explora a figura do idoso em campanhas
publicitárias na grande mídia. Seriam os idosos uma massa que não
tem o direito de consumir? Que não possuem sonhos e desejos de
consumo? Ou que simplesmente não detém os meio de produção,
nem a força de trabalho, e estão realmente à margem da sociedade?
Destaca Minayo (2002, p.22):
"É preciso reconhecer que, do ponto de vista econômico, os idosos
e, de forma destacada, a ‘terceira idade’ se configuram hoje como
um mercado crescente e cada vez mais promissor no mundo dos
bens de consumo, da cultura, do lazer, da estética, dos serviços de
prevenção, atenção e reabilitação da saúde".
Uma completa desvalorização do idoso, e uma aversão ao
envelhecer, podem ser constatadas na nossa sociedade.
O imaginário coletivo sobre o envelhecimento acentua os traços
da realidade social, difícil para o idoso, e cria representações
individuais sobre o envelhecer que geram desconforto, e muitas vezes,
o próprio desejo e a necessidade de "rejuvenescer". Como se possível
fosse o "não envelhecer".
O bom e o belo é o "novo", e não o "velho".
Tais valores imperam.
Seriam os idosos capazes de emergirem como atores sociais neste
seu acelerado crescimento percentual na população e desconstruírem
esta cultura do bom e belo ser apenas o "novo"?
E de onde surge o "novo" se não de uma determinação histórica,
de uma construção social anterior, que possivelmente teve a
colaboração ativa dos jovens de outrora, que são os velhos de agora?
Mudar a concepção do velho e do envelhecer em nossa sociedade
é um grande desafio. Uma missão com implicações concretas no nosso
futuro, posto que todos nós envelheceremos!
Não há como falar do envelhecimento sem focar o idoso. E o
idoso é quem acredita ter bastante idade, ou é aquele que os outros
consideram ser velho?
Então, quando uma pessoa passa a ser idosa?
Tornar-se idoso é como uma travessia de um rio de margens
imprecisas. Um processo que toma parte considerável da vida. Não se
fica idoso de um dia para outro. Ser idoso não se resume a algo
convencionado, como completar os 60 anos num país em
desenvolvimento, ou 65 anos num país desenvolvido, pois a idade
cronológica não traz uma correspondência obrigatória com as fases do
envelhecimento biológico ou social.
No imaginário e representação individual do idoso, ele observa,
constata e reflete sobre o seu próprio envelhecer, o seu "ser idoso", e
manifesta este sentimento em um simples gesto, atitude ou palavra,
ou de formas complexas, com manifestações mais elaboradas
envolvendo, por exemplo, mente-corpo, e saúde-doença, e também
através da arte, plástica, dramática ou musical.
"Envelheci e nem percebi...", é uma frase comum. Frase
carregada de negação ao envelhecer, mecanismo de defesa comum,
utilizado durante um bom período da vida. Frase de quem olha para
o espelho e não se vê. A imagem projetada pela retina na mente, não
corresponde à sua própria imagem projetada pela luz no espelho.
Sonhos que se desfazem, espelhos que se quebram, imagens do
passado desconstruídas, e só resgatadas em fotos ou registros
históricos. Passado e memória. A memória mais antiga é a mais
perene.78
O idoso é memória. Antes do surgimento da escrita, a morte de
um idoso representava uma perda enorme de informação e cultura.
Eram os idosos, os únicos depositários fiéis das mais relevantes
passagens de uma dada comunidade, suas conquistas e derrotas, sua
arte, costumes, e língua.
O idoso e a falta de memória. O esquecimento, tão comum em
quem envelhece, é um ato de proteção contra ao tudo lembrar.
Imaginemos a angustiante situação de lembrarmos de todas as
passagens da vida, ou seja, de todas as coisas boas ou ruins que
ocorrem em nossas vidas. Esquecimento é um mecanismo de defesa,
nosso, e contra nós mesmos. Seus limites fisiológicos são determinados
pelo grau de interferência do esquecimento nas atividades da vida
diária, e a associação com outros déficits cognitivos (linguagem,
cálculo, etc.).
No imaginário coletivo do idoso, as representações são
traduzidas em mitos e crenças populares, preconceitos, e ditos, num
discurso próprio de cada lugar sobre quem é idoso.
Aqui o espelho é substituído pela lente da sociedade, que filtra,
e às vezes distorce, os feixes de luz que conduzem a imagem do idoso.
O mito de que tudo piora com a idade. É um mito que sempre
conspira contra o idoso. Tanto ouvimos, que – quase - aceitamos.
A crença popular de que a "esclerose" é inevitável e que a
caduquice é parte do envelhecimento impede que milhares de
pacientes tenham um diagnóstico de demência, quem nem sempre é
sinônimo da Doença de Alzheimer.
Idoso pode ser trocado por "velho", seguramente um termo mais
jocoso, e freqüentemente associado a: ranzinza, ranheta, rabugento,
pão-duro, mesquinho, careta, teimoso, chato, "triste"... Imaginários
coletivos que traduzem preconceito, e possibilitam ações de
discriminação.
Ditos: "quem conta um conto aumenta um ponto". Ditos que
amplificam a visão social – real ou distorcida - do idoso. "Quem pode
manda, quem tem juízo obedece"; e obedece a pessoa idosa, que não
manda mais! O consultório do geriatra está repleto de "ex". Ex-
prefeito, ex-deputado, ex-presidente, ex-diretor, magistrado
aposentado, professor emérito, oficial reformado, bispo aposentado...
Mas o que mais chama a atenção é o "ex-cidadão": aquele que já
exerceu um dia a plena cidadania, mas já não pode exercer mais...
Ações da sociedade, sobre o idoso, advém de uma realidade
determinada pelas representações individuais e sociais, dos
imaginários individual e coletivo sobre o envelhecimento e o idoso.
A construção, individual e coletiva, deste imaginário e
representação é fruto do nosso pensamento e ação sobre o idoso e o
envelhecimento.
O idoso, a cidadania, e os caminhos a trilhar. Restam algumas
questões: Qual é o envelhecimento que nós almejamos? Quem é o
idoso que nós queremos ser? O que vamos fazer para alcançarmos
esta imagem-objetivo?
A envelhecimento que todos nós almejamos é o envelhecimento
com qualidade de vida, bem sucedido. Não isento de problemas, mas
com potencialidades para gerenciar ou transpor cada obstáculo.
O idoso que nós queremos é o sujeito ativo dos seus próprios
cuidados e da vida, que com autonomia e independência possa viver
com plenitude todos os seus dias.
O alcance desta imagem-objetivo só é possível com uma grande
mudança do paradigma de "ser idoso" em nossa sociedade, o que
envolve a quebra de espelhos e lentes da sociedade e de cada um de
nós, rompendo com mitos e crenças populares, preconceitos e ditos
sobre o idoso.
Ser idoso é colocar uma "máscara de idoso" imposta pela
sociedade?
Nos versos do engenheiro aposentado Álvaro de Campos
(PESSOA, 2002, p.467):
" Depus a máscara e vi-me ao espelho...
Era a criança de há quantos anos...
Não tinha mudado nadaÉ essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança.
O passado que fica,
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor.
Assim sou a máscara.
E volto à normalidade como a términus de linha".